21 de novembro de 2014

[Ace Travels] O Trauma do Comboio (Alemanha 2014)


Paralelamente aos meus sítios de escrita onláine, mantenho trancado numa gaveta no armário do meu quarto um diário de papel no qual escrevo mais amiúde sobre acontecimentos pessoais, que não partilho aqui na totalidade por medo de ferir o anonimato virtual. Porém, existem excertos que, pela sua magnânima idiotice, bizarrice, ou por até gostar minimamente de como estão escritos, não resisto em mostrar.

Eis um deles.

Na minha já a esta data longínqua viagem à Alemanha, para a qual - sabe-se lá por que razão - me convidaram mal tinha posto um pé entorpecido fora da sala de exames, ocorreu um certo acontecimento que, na minha ínfima experiência de vida, poderá ser considerado um trauma a nível nuclear.

Num dos milhares de comboios nos quais fomos enfiados para percorrermos a distância do aeroporto da capital até à pequena cidade ex-agrícola na qual éramos esperados, estava o batalhão de viagem enterrado nos bancos acolchoados, os malões de viagem a servir de apoio para os pés, divididos entre amena cavaqueira e documentação fotográfica dos acontecimentos para as redes sociais, chega-nos uma das guias ao pé com um conciso alerta:

"Atenção pessoal, atenção. Tu, larga lá o Snapchat por dois segundos, faz favor. Ouçam: assim que desembarcarmos na próxima estação, tenho de vos pedir que corram, o mais rápido que conseguirem. A hora do desembarque deste comboio coincide exatamente com a hora de partida do próximo, e se o perdermos, temos de ficar uma hora à espera de outro."

Flashbacks de guerra assolaram-me tal balde de água fria pela espinha abaixo: horas antes, à custa da TAP, tínhamos tido o prazer de esperar sete horas por um avião cujo tempo de espera normal seria de dez minutos (#obrigadoTAP). O quão penámos nós naquele mal enviesado aeroporto, que sofrimento regado a Starbucks e pastéis de nata caros como o capeta. Mais uma hora à espera de transportes? Nem que me pagassem o peso do comboio em ouro. 

Olho em volta, e parecem os companheiros de viagem ter feito a mesma decisão. Assim que o comboio começa a abrandar, encontra-se o grupo de trolleys de viagem em punho, prostrados rente às portas do comboio em posições de corredor olímpico, prontos para uma tresloucada corrida, sempre a direito, até ao próximo transporte.

Pára o bicho. As portas abrem.

E é com isto que nos deparamos:


Caso as minhas capacidades artístico-esquemáticas não sejam suficientemente claras para explicar o problema, eu elucido: separando o comboio de onde acabáramos de sair do que teríamos de apanhar em questão de segundos, estava uma íngreme, extensíssima (eu sei a fama que tenho de hiperbolizar desnecessariamente, mas por favor, confiem em mim quanto ao extensíssima. Não estou nem na geral área de andar a brincar com uma coisa dessas) escadaria de pedra, uma passagem-ponte ainda mais longa, e outra escadaria.A linha vazia não nos poderia servir de passagem porque, para além de se encontrar numa fossa, e não ao nível do chão, estava embuída de uma nada agradável carga de alta voltagem. Todo este raciocínio me passou pelas sinapses em questão de milésimos de segundo, e foi o suficiente para ouvir a voz exasperada da guia, já a correr em direção às escadas:

"Corram, corram!"

E metemos a terceira numa desenfreada maratona atrás da senhora.

A este ponto, permitam-me só recordar algo: contrariamente aos meu inteligentes colegas, que se tinham munido para a viagem de um pequeno trolley e uma mochila normal de escola, eu tinha em mãos dois trolleys: um de vinte quilos, que me chegava à cintura, e um pelo rabo, de quinze. Bisarmas estas que teria eu de içar escadas acima e empurrar escadas abaixo recorrendo apenas à inexistente força dos meus raquíticos braços.

Vá lá. Estava destinado a dar merda.

Cinco degraus subidos, começaram os braços a dar sinais de exaustão. De olhos pregados no comboio do outro lado da linha vazia, ameaçando partir e deixar-nos por terra, puxei as malas ainda com mais vigor, prendendo o peso nos meus ombros já de si macerados de uma desconfortável dormitância no avião.

Vinte degraus e estava arrumad@ a um canto. Já não dava. A única coisa que ainda me propulsionava a dar passo era o culpabilizador sentimento de "não hão de ficar uma hora à espera porque a minha inteligente personagem preferia ficar a ver séries e a comer Chocapic em vez de ir às piscinas ou fazer jogging". 

Suava por todos os poros da pele. Doíam-me as mãos de puxar os manípulos de plástico duro dos trolleys, doíam-me as pernas em lapsos de tensão muscular por nunca as ter esforçado tanto na minha vida, ardiam-me o peito e a garganta de tal forma que, se não soubesse, pensaria que estava a encarnar o Smaug e prestes a lançar fogo àquela baderna toda.

Subo finalmente as escadarias. Respiro fundo, sentindo o coração a pulsar-me na boca, e desato num sprint digno de Usain Bolt em direção à outra escadaria. Assim que lá chego, jogo as pernas escada a baixo, uma força bruta nos antebraços para impedir as malas de me passarem à frente, descontroladas, e de se irem espetar no chão de cimento, abertas e com os conteúdos em cacos.

Só no fim das escadas - quantas bençãos eu não clamei a toda a divina figura existente neste ou noutros universos, por este momento que recordarei até ao final da minha existência, amén - é que notei que a guia falava com o maquinista do nosso próximo comboio, pedindo-lhe que esperasse dois minutos pelas nossas arfantes figurinhas. Vira-se então para o grupo, dividido, a esta altura, em dois: os que, a uns meros cinco metros dela, provavelmente se tratavam de desportistas de alta competição, e os que, a vinte metros ainda do comboio, são daquela laia que paga um euro à irmã mais nova para alcançar o comando do outro lado do sofá porque é demasiado esforço - e diz-nos:

"Relaxem! Vá lá, em passo rápido, mas relaxem que aqui não partem sem nós."

Outro momento do qual nunca me esquecerei foi quando, com as malas arrumadas a um canto, me sentei no assento estofado do comboio, uma garrafa de água numa mão e uma sandes amarfanhada noutra, e aproveitei a paz de três horas de viagem.

São os pequenos prazeres da vida. Ou chamemos-lhe antes, reiterando o já dito no início, os pequenos traumas. Ainda hoje, ao escrever este snippet, parece que sinto a garganta a encher-se de areia e os poros a dilatar do esforço. Se alguma vez me pedirem uma justificação para a minha aversão ao exercício físico, ao menos agora tenho uma bem plausível.

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