19 de setembro de 2013

[Causos] Nana e a Cidade dos Alucinados


A minha cidade é a capital da maluqueira.

O antro da alienação. O pináculo da atordoação mental. Uma FreakCon levada à letra cujas rédeas não só se partiram, mas foram usadas como chicote para atiçar os doidos que se andam a rebolar na relva do jardim público e a cantar Zé Cabra.

A minha cidade é um pouco para o estranha.


Ia eu na segunda-feira a caminhar para a escola, camuflada na nuvem de gente que para os mesmos lados se dirigia e maçada pela falta do meu mp4 e pela existência de aulas quando, do outro lado da linha do comboio, salta das profundezas do nada um homem de cara encovada, calções curtos e blusa apertada da Hello Kitty, a gritar-nos que parássemos e a apontar freneticamente para a distância. Atordoados, olhamos para onde o homem nos indica, e vemos a minhoca de ferro a palmilhar a linha a uma considerável distância de nós, sendo-nos confortável ainda passar para o outro lado sem perigo de abardalhamento.

A qualquer tentativa de atravessar, no entanto, o tal homem do outro lado berrava-nos que ficássemos quietos, enquanto fixava preocupadamente a maquineta. O comboio aproxima-se vagarosamente, passa por nós a guinchar e a soprar, e voltamo-nos para o nosso auto-proclamado guarda de linha. Este, abrindo um sorriso desdentado nas faces sujas, indica-nos que passemos com um abanar vigoroso de mãos, informando-nos ainda "salvei-vos a vida, hem? Já viram se eu não estivesse aqui?" e, como golpe de assentada, vira-se para mim "Olha, não conheço a menina. É nova, aqui? Olhe que eu conheço toda a gente da cidade e não a conheço a si. tenha cuidado por aí, sim?"

Uma pessoa descolora o cabelo e passa de Clark Kent a Super Homem.

Mas talvez aqui o lugarzinho não abunde, realmente, em pessoas cuja sanidade mental provavelmente nunca existiu; só que o facto de ser pequena faz com esse quinhão populacional se torne mais visível. Mais notado, de entre os cidadãos ditos comuns porque pagam contas, têm casas e não se põem a uma esquina com um papagaio de plástico ao ombro a dançar kuduro aos sábados de manhã.

Não posso dizer que sou incomodada com isso, mas também não seria sincera se afirmasse que tais aparições se tornaram normais. Meus amigos, figuras mentalmente irreverentes e respetivas decisões de vida não são algo a que, simplesmente, nos "habituemos". Ninguém se habitua. Até os habitantes mais anciãos, que pensam já ter visto de tudo, conseguem arregalar os olhos afundados em rugas à imprevisibilidade destes nossos alegres cidadãos.

E quando se pensa que já se conhecem todos, aparece sempre mais algum. 

Estava eu ontem na esplanada do café, meu poiso habitual, quando se aproxima uma mulher de mochila e calção, aos tropeções nos próprios pés e a ameaçar as paredes no que me parecia um dialeto matarruano extinto. Eu e os adultos olhamos para ela, mas rapidamente voltamos ao aceso debate sobre praia e meteorologia e porque camandros é que agora faz frio de manhã, calor à tarde e frio à noite. Dois milénios de cambaleação depois, a admirável senhora chega finalmente à esplanada e pede se alguém tem um cigarro num espanhol alcoolizado, ou intoxicado, ou ambos. A minha mãe recusa-lhe o vício, apesar de estar com um na mão, a mulher lança-lhe uns olhares que, se eu não soubesse, diria que era suposto serem ameaçadores, e afasta-se a fazer o mesmo pedido a toda a gente na esplanada.

Pedido recusado por toda a santa alma. A mulher arrasta-se de volta à nossa mesa, pára e começa a fazer uma macumba à minha progenitora.

E eu ali.

A ver uma desorientada da vida de boca aberta a abanar os braços na direção da minha mãe, como se ordenasse aos espíritos de Santa Vulva do Assobio que a possuíssem e, tal menina do Exorcista, lhe oferecessem uma língua tamanho de um poste elétrico para poder roubar os cigarros que por tanto desesperava. Quando se apercebeu que se calhar as tais entidades ainda estavam em férias, lá desistiu e se foi embora.

Entreolhámo-nos atordoados. Olhámos para as outras pessoas da esplanada, que não conhecíamos mas passámos a conhecer. Uma empregada minha amiga veio cá fora também perdida das ideias. E, assim que deixámos de tentar fazer algum sentido naquilo que acabáramos de presenciar, desatámos todos à gargalhada enquanto fazíamos apostas sobre o tipo de praga que lhe rogara.

Porque pronto.

Há ocasiões em que o melhor é não levar a sério e deixar andar.

Ainda para mais, todo este ambiente Twilight Zone/Night Vale-ístico joga a muitas vezes a meu favor, visto que dá a mais perfeita das justificações para como a minha personalidade veio a ser. Desafio-vos a encontrar melhor.

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