10 de agosto de 2013

O porquê de eu chorar a ler.

Com um título destes, até parece que vou enfiar aqui num desenfreado relato das incontáveis vezes em que desatei aos guinchos numa aula porque a morte de uma personagem foi demasiado para o meu pequeno coração, ou da outra em que um dos bagaços chorava aos pés do amigo moribundo e eu chorava com os dois. Na sala de espera do Centro de Saúde.

Mas não. Em vez de uma melodramática cronologia das minhas exacerbadas emoções face a literatura, vão ter antes um ranting sobre as coisas que me fazem lacrimejar e encolher-me de horror na literatura juvenil portuguesa de hoje em dia.

Apanhei-vos bem, não foi?


Tenho lido muito este verão. Sim, apesar de não haver aqui resenhas. Porque eu leio, começo a resenhar, e vou metendo spoilers sem me aperceber. E depois tenho de refazer tudo, mas sem os parágrafos que continham spoilers ficam minúsculas, então deixo ali a marinar num cantinho até ter coragem para refazer.

Mas adiante. 

Passei a maior parte de junho e metade de julho a ler fiction amadora em inglês na internet. Para além das já habituais doses cavalares de slash, decidi-me a ler romances, ficção científica, géneros que tinham sempre sido escamoteados em prol de conteúdos mais obscenos. 

E fiquei feliz. Por cada má fic que encontrava, cinco boas. Li de tudo, e ainda me fiquei a perguntar como é que algumas pessoas não eram descobertas por editoras.

Para aí a meios de julho, decidi virar-me para a literatura juvenil publicada. Li de autores traduzidos, mas também portugueses.

E fiquei triste. Com as duas vertentes, mas foco-me aqui mais nos portugueses, porque, para além das razões da minha tristeza se apresentarem com mais frequência nestes, bom, eu escrevo o blog em português. Se há alguém que eu consiga atingir primeiro com isto, hão-de ser falantes de português. E ficarei feliz se apenas um escritor, amador ou não, repensar a sua obra à custa do que aqui direi.

Para começar, peguem num livro de literatura juvenil que tenham por aí. Vão lá. Eu espero. Já está. Agora vão buscar uma garrafa de uma bebida alcoólica da vossa preferência, e um copo de shots.

Vamos jogar um pequeno drinking game. Abram o livro, comecem a ler, e tomem um shot sempre que:


1. O herói é rapaz ou rapariga branco, cisgénero e hétero. Shot de bónus se for os três.

2. Nunca ninguém acreditou nele(a). É um(a) incompreendido(a) da vida. Shot de bónus se eles fazem questão de reiterar esse facto quinhentas vezes.

3. O vilão que só é considerado vilão porque não gosta do herói.

4. O vilão só é vilão porque tem ideais diferentes do herói. 

5. Estes continuam inimigos por toda a história, sendo que a sua relação não evolui, o herói nunca questiona esta antipatia mútua e não conhece uma forma de o chamar à razão que não seja "dar-lhe umas caqueiradas no focinho". 

6. A certo ponto entra também uma rapariga/rapaz que está começa por ser o seu companheiro de aventuras e  está na cara que vai ser "o interesse romântico". Bónus se o interesse romântico for também branco, cisgénero e hetero.

7. Eles não se podem ver um ao outro nem pintados de ouro, mas o seu amor floresce das adversidades e duh, é logico que gostavam um do outro, porque "quanto mais te bato mais gosto de ti", certo?

8. O amor é coisa mais importante de todas e prevalece sobre tudo e todos. Incluindo amizades.

9. Há um gajo que só serve como alívio cómico e/ou um gajo misterioso. Bónus se um deles se sacrificar pelo herói a certo ponto.

10. Manic pixie dream girls a dar com um pau. Um shot por cada uma que apareça.


Se conseguiram chegar ao terceiro capítulo sem entrarem em coma alcoólico, parabéns. Encontraram um livro minimamente diferente.

Para já, comecemos pelo início (não, jura).

Antes que me comecem aí a acusar de ser heterofóbica, cisfóbica, racista-reversa e a esposa do Satã, acalmem vossas mamas/bolas. Não há nada de errado com personagens com essas características, desde que estas sejam uma parte do todo, e não o todo em si.  Digam-me um livro, um livro apenas, em que o herói, personagem principal da trama, não tem essas características. Temos um mundo de diversidade, no qual nem toda a gente segue esse padrão de pele clara, cigénero e heterossexualidade, e é incoerente, desconfortável e desrespeitoso para muita gente que os livros o retratem de maneira tão fechada.

"Ah Naomi, mas muitas vezes nem é na Terra, é num mundo ficcional e" a gaita que vos penetre, se o vosso lindo e adorável mundinho ficcional pode ter vampiros, lobisomens, succubus, gente meio dragão meio humana e meio barata, mas Deus me livre que tenha gordos ou trans ou negros, então a vossa realidade alternativa não vale cu e meio.

Diversidade, gente. Diversidade, para enfatizar. Precisamos de algo que não siga um padrãozinho quadrado.

Sabem o que é que eu quero? Quero uma protagonista que não se apaixone pelo companheiro de viagens. Quero uma protagonista lésbica e um rapaz transsexual, com todos os medos e problemas que isso acarrete. Quero um personagem gay cuja personalidade não revolva em torno do facto de que ele é gay. Quero dois caçadores de recompensas que sejam uma género-fluída negra panssexual e um asiático assexual. Mas por amor a tudo, que essa assexualidade não se evapore assim que conhece "a pessoa certa". Isso, além de não ser como a assexualidade funciona, é extremamente desrespeitoso para as pessoas assexuais.

Quero uma rapariga que seja fofinha e adore tons pastel e laços e saias rodadas mas que seja respeitada como pessoa forte e independente em vez de servir de burrinha para alívio cómico. Quero uma rapariga que use saias curtas e goste de sexo e cuja credibilidade não seja questionada por isso. Quero um rapaz que goste de pintar o cabelo e usar batom e calções curtos mas que se identifique como um rapaz, e quero que seja respeitado, e não motivo de chacota. Quero um misterioso que se alheia do resto porque tem ansiedade social, e não porque é giro ter um personagem misterioso. E que essa ansiedade seja bem retratada, e não que lhe espetem um rótulo de "antissocial porque quer". Quero que o engraçado tenha graça como parte da personalidade, e não como a personalidade em si.

Quero gordos, magros e encurvados. Quero olhos mortiços (que já estou farta que toda santa personagem tenha "olhos brilhantes"), narizes grandes e orelhas de abano. Quero estrias, barrigas e incapacidades. Quero cegos que recebam respeito e não pena (Toph do Avatar, é só o que eu digo), paraplégicos e tetraplégicos com um papel ativo.

Quero gente. Era giro.

Mas depois vêm-me dizer que tal não acontece porque "as pessoas estranham. E se aparece algo a que elas não estão habituadas, não compram."

BEM DESCUUUULPE?!
Como consumidora de literatura, eu digo-vos: as pessoas gostam de diferença, e estão cansadas de padrões. Porque é que acham que as pessoas se fartam de Dan Brown? Depois de três livros sobre um intelectual que é chamado para resolver uma charada envolvendo um grupo secreto com a ajuda de uma personagem feminina e um polícia marmanjo a atrapalhar-lhe as investigações, as pessoas cansam-se. Para quem lê um livro dele, a coisa até é inteligente e engraçada. Quando nos decidimos a ler mais alguma coisa, e descobrimos que o homem aplicou o mesmo modelo a todo o seu santo livro, achamos aquilo uma puta falta de sacanagem. E Nora Roberts? Atire o primeiro teclado quem não está farto de trilogias sobre a história de três mulheres amigas (com três maridos/namorados sem personalidade) que têm de se descobrir a si próprias numa jornada metafórica da qual saem sempre vitoriosas e acabam felizes e contentes numa vida perfeita. Vamos ter paciência.

Porra, eu gostei de CHERUB. É um livro para uma faixa etária mais baixa que a minha, mas tinha conteúdo. A personagem principal é um bagaço musculado, loiro, de olho claro, e esse facto também não me agrada, porque a princípio segue o padrão, mas um é desmarcado estúpido. E esse facto não é omitido ou abafado por ser o protagonista. Trai a namorada e arca com as consequências. Acaba com ela da forma mais assholística possível, e leva nas orelhas, seja pelos amigos, seja pela nova namorada. Comporta-se de forma homofóbica para o amigo gay, daquela forma que os rapazes adolescentes fazem ("aah, não tenho nada contra, mas também não me cheguem ao pé") e recebe uma ensaboadela de bom senso no focinho que até anda de lado. Faz asneira a torto e a direito, mas é castigado de acordo. E, para a faixa etária que é, ensina. Educa. Tem falhas, alguns personagens com pouca personalidade, podiam dar menos foco ao parolo do loiro, e usa umas quantas tropes, mas falando em diversidade, dá um bom passo em frente.

Ah, e é um best seller. Então não me venham dizer que não fazem porque não vende.

Em conversa com uma amiga sobre este assunto, ela também deu a seguinte justificação:

"Os autores também têm medo. Tipo, imagina que estás a escrever uma personagem lésbica, e fazes com que ela faz algo desrespeitoso para a comunidade LGTBA+, sem te aperceberes. Cai-te tudo em cima."

Ao que eu respondo:

"Mas um bocado de pesquisa e bom senso resolve isso. Nem que vás ao desgraçado de um chat ou do yahoo e perguntes. Se criares uma conta no Tumblr, então, certamente aprendes qualquer coisinha sobre isso."

E ela solta a pérola:

"Mas dá menos trabalho, menos confusão e é menos 'perigoso' se escreveres uma personagem usual."


E abriu a Caixa de Pandora.

Escrever não é trabalho para preguiçar. Começar a tentar escrever pensando que é tarefa fácil é suicídio. Envolve muita pesquisa, muito trabalho, muito esforço, mesmo que se trate de um mísero de um drabble. E recorrer a padrões só para minimizar o trabalho e o esforço é uma falta de respeito para com os leitores, uma tremenda preguiça e um desleixe descomunal. Além do mais, nada "normal" chega ao patamar do notável. Se a vossa escrita não tiver nada de diferente, ninguém vos leva a sério como escritores e muito menos ligam ao vosso trabalho.

Portanto deixem-se de porcaria. Olhem para o mundo à vossa volta, e vejam, em vez de olharem só. Vejam como as pessoas têm tiques e falhas, diferenças e peculiaridades. Quando escreverem, pensem se gostariam de viver num mundo onde toda a gente é bonita, de olhos brilhantes, pele ebúrnea e comportamentos ponderados e adultos 24/7. Se seria minimamente interessante um mundo assim. Se não sentiriam falta da amiga gordinha que faz batota a jogar basebol por ter uma resistência física mais fraca. Ou do rapaz baixinho que é tão confiante nas suas habilidades de jogar às cartas que lhe dá um ataque de birra sempre que perde. Do colega gay efeminado que desconforta os rapazes que sabe serem "homofóbicos-contidos" de propósito. Daquela rapariga que toda a gente sabe ser um rapaz por dentro, mas que tem demasiado medo de assumir. 

Quanto a mim, seria chato até mais não.

Mas isso sou só eu. Porém, se concordam comigo, podiam contribuir, que tal? Na próxima composição que vos pedirem na escola, sejam uma indiana bissexual. Quando quiserem escrever qualquer coisa, por diversão, para um concurso, para um projeto ambicioso, façam o machão chorar, a amizade ser mais forte que o amor, e o vilão ser o herói. Façam aquele rapaz que toda a gente achava um cobarde dar um murro da cara do herói quando este está a ser um cu. Façam um demissexual. Ou um heterossexual birromântico, a ver a barraca que dá. Façam uns quantos queers e uma ruiva cujo cabelo seja mesmo ruivo, e não vermelho brilhante das caixas de tinta.

Vão ver que é mais giro.

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